2008/07/31

Os vinhos portugueses e a "Silly Season"

Nos meses de Julho e Agosto, "ataco" a cerveja e volto-me muito para os vinhos verdes simples. Bebo muitos rosés e sobretudo testo a qualidade dos vinhos mais publicitados. Alguns desses são produtos de grande êxito comercial pelo que me parece pelo menos razoável - para não dizer obrigatório - ver os produtos "com que o mundo nos vê".

Esta minha mania começou quando há alguns anos numa prova fora de Portugal um jornalista norueguês me perguntou o que eu achava do Mateus Rosé. Eu disse, sobranceiro, que há muito tempo que não provava esse vinho. Ele ficou escandalizado e disse-me "mas é o vinho que Portugal mais vende e é um caso de estudo mundial!" Senti-me um tolo, por ser português e não conhecer os produtos do meu país.

O dito Mateus Rosé passou a entrar muitas vezes na minha mesa, quando se trata por exemplo de cozinha indiana ou chinesa. Constato, nos restaurantes chineses mais pequenos que depois de eu pedir a pequenina garrafinha (bebo meia, normalmente) há muita gente que também pede, abdicando da cerveja. Percebo, por conversas trocadas com a Sogrape que há simpatia pela marca em Portugal, apesar de pouco comentada ou confessada.

O que se aplica também a outras marcas. Lancer's rosé, por exemplo, está em todos os bons restaurantes algarvios porque ingleses e americanos não o dispensam; até querem provar o vinho na sua terra de origem.

Marcas como Gatão, Gazela, Lagosta, Casal Garcia, etc., funcionam muito bem com bivalves petiscados (amêijoas à Bulhão Pato, percebes, canilhas, etc.) e com marisco ao natural.

Os vinhos verdes também pontificam nas minhas escolhas veraneantes, a preços muito razoáveis. No Verão do ano passado, fez-me muita companhia o rosé da Adega Cooperativa de Ponte da Barca, que custava cerca de 3 Euros a garrafa e cumpriu muito bem o seu desígnio.

Graças a estas minhas manobras de Verão, ganhei um respeito muito grande pelos vinhos que são - pelo menos por enquanto - os nossos embaixadores no mundo. E gosto muito do quanto nos defendem as bolsas.

(Tópico lançado na rede Star Tracker do talento português no mundo)

2008/07/06

A minha contribuição para a Confraria dos Pastéis de Nata
Viva a rede "Star Tracker" pela iniciativa (www.thestartracker.com)

Não há cozinha como a nossa, apesar dos seus muitos recantos pouco visitados e talvez pouco acessíveis. Ora descende da necessidade absoluta de alimentar a família em tempo de escassez, ora demonstra um luxo de ingredientes que ainda hoje temos dificuldade em reproduzir. Não há talhão lusitano que não tenha os seus regionalíssimos pratos de peixes maturados, de vísceras preparadas à maneira de preciosidades, ou de condimentos picantes e sápidos que tantas vezes fizeram as vezes da proteína que insistia em não cair no prato. Pode, por isso, precisar de iniciação quem não conheça as bases da cozinha portuguesa, quando finalmente se quer aproximar dos pratos que nos vão a nós, portugueses, no coração e na memória. Afastámos os fantasmas da escassez e da fome, e soubemos fazer da mesa uma festa incrível e sempre farta, mesmo que parca em variedade. Nem todos estamos bem dispostos quando estamos à mesa, porque somos dados à fatalidade. Se nos lembrarmos do recado do Poeta, de que “só os povos profundamente alegres podem ter canções tristes”, e se transportarmos o dito para a mesa, depressa percebemos que a festa do nosso fantástico do povo está no conteúdo e na alma do que preparamos e comemos, mais do que na forma.

O pastel de nata pode bem ser um paradigma moderno do filme sem legendas da culinária portuguesa. Bolo pouco ou nada ornado, surpreendeu o mundo inteiro exactamente como os portugueses ao longo dos séculos surpreenderam: pela simplicidade e pela profundidade. Para mim, as receitas são apenas duas, ligeiramente divergentes na matriz apesar de conducentes ao mesmo resultado final. São elas a do nosso gigante chefe Mestre João Ribeiro, o mesmo que montou a mítica cozinha do Hotel Aviz (um dos mais luxuosos da Europa, no sítio onde hoje está o Sheraton de Lisboa); e a do homem de sociedade e grande gastrónomo António Maria de Oliveira Bello, que adoptou como heterónimo um anagrama do seu nome: Olleboma.

Ribeiro fixa a receita do recheio dos pastéis de nata assim:

1 litro de leite / 50g de farinha / 1 litro de calda de açúcar a 30º / 12 gemas de ovos. Liga-se a farinha com o leite e vai a cozer; deixa-se ferver muito baixinho 2 a 3 minutos, e mistura-se o açúcar. Quando estiver morno adicionam-se as gemas.

Já Olleboma fixa duas receitas, das quais elegemos a mais simples:

Misturam-se 5dl de nata fresca não batida, 8 a 10 gemas de ovos e 150g de açúcar branco. Leva-se ao lume até levantar fervura, mexendo sempre e, em estando morno, aplica-se.

Leite em João Ribeiro, natas em Olleboma, se dissermos as receitas em voz alta percebemos uma coisa chocante: dizem o mesmo, em dialectos diferentes. Enquanto um se atém à proteína original – leite -, o outro parte da nata fresca. De resto, fazem-se num instante e só temos de aprofundar o leite, os ovos, açúcar e a farinha – a que Olleboma renuncia – com os quais fazemos o recheio. Esse aprofundar, contudo, dá para uma vida inteira. Depois, pau de canela, casca de limão, vagem de baunilha, etc., são acrescentos que os doceiros mais atreitos à complicação chamam para os “seus” pastéis. Trabalho inglório, porque tudo o que é da verdadeira culinária portuguesa, ninguém inventou; é invenção de todos. Que ninguém tente, por isso, apropriar-se de tal património!

Quando penso sobre a massa folhada que deve ser feita para os pastéis de nata, primeiro penso “qualquer uma”. Mas depois de os provar, são inefáveis os que são feitos com a massa de 5 voltas, com banha e um pouco de manteiga, duas idas ao frio e longanimidade, que sem paciência nada se consegue. Mas não quero insistir neste ponto, parece-me inútil, face à dificuldade que um português encontra pelo mundo fora, quando tenta, a partir dos ovos, leite e açúcar locais reconstruir o “seu” nata. Até porque Maria de Lourdes Modesto é de opinião que a massa com banha não é a mais apropriada.

Em jeito de epílogo, fica a aclamação da forma portuguesa de cozinhar e fixar receituário: 1) simples; 2) sem segredos.

Defendamo-nos, por isso de fabricantes de pastéis de nata que nos dizem que têm uma “sala do segredo”; esses falham em ambos os pontos que aclamo. Os “pastéis de Belém” são isso mesmo: de Belém. Para caminhos obscuros nos levam quando nos dão a ler “cuidado com as imitações”. Não é esse, seguramente, aquele que testemunha a culinária portuguesa pelo mundo fora. É, antes, o simples, seja de João Ribeiro ou de Olleboma. Feito na China, pode não saber ao mesmo, mas é um pouco de Portugal que ali estará.

Os Star Trackers são os primeiros a internacionalizar o pastel de nata e a fixar globalmente o seu perfil culinário. Sou sensível aos acasos, mas sobretudo à sua elaboração. Diz Francisco Sampaio, da Confraria Gastronómica do Minho, que “as tradições se inventam”. Aqui está mais uma.