2003/11/28

Porto Vintage 2001
Os eleitos do meu coração

De cerca de 30 vinhos do Porto Vintage provados, fica aqui o registo dos que, numa escala de 20 valores, ficaram acima dos 17,5. A prova foi feita às cegas, ou seja, sem identificação das amostras. Não provei sozinho, fi-lo com quatro provadores mais.

As estrelas de 2001

19,5 Fonseca Guimaraens Guimaraens. A casa está num caminho imparável, sistematicamente encostada ao topo da classificação, ano após ano. A marca Guimaraens sai nos anos não clássicos e, mesmo assim, apenas quando os néctares estão à altura. Nariz muito mineral e floral. Toda a prova é em potência e, ao mesmo tempo, equilíbrio. O final é interminável, num vinho que se podia dizer perfeito.

19 Quinta do Noval Nacional. Como é sabido, estes vintages vêm de um talhão de vinha pré-filoxérica, especial já dentro da especialíssima quinta do Cima Corgo. Impressionante na cor, retinta, o aroma é muito intenso de violetas e cogumelos frescos, mineral, para uma boca interminável de impressões difíceis de narrar.

18,5 Quinta do Noval Silval. Está a tornar-se o porta estandarte da qualidade da mítica - e inalcançável - Quinta do Noval. Nariz muito floral e boa potência no global da prova. Taninos muito bem trabalhados e fortes, com tudo bem integrado.

18 Niepoort Secundum. Desde 1999 que a casa opta pela segunda marca quando não é clássico, mas em 2000 saiu com os dois para o mercado, curiosamente com estilos totalmente diferentes. O Vintage clássico Niepoort é super-tânico, embora de estrutura cuidada, mas claramente um vinho de guarda, enquanto que o Secundum é mais pronto para beber. Com este 2001, perguntamo-nos se não se estará a afastar do estilo Niepoort. Há que deixar passar tempo, para avaliar os vindouros. Vinho muito fechado, com boas notas aromáticas de fruta em compota. Vinho cheio, monolítico, mas seco no final, como se impõe.

18 Poças Poças. Discretamente, esta casa põe todos os anos vinhos assombrosos pela potência e concentração. Este não foge à regra, mostrando cogumelos frescos nos primeiros aromas. Boca tem entrada exuberante, embora depois perca alguma força, na continuação da prova.

18 São Pedro das Águias São Pedro das Águias. Austero na prova, cor tinta da china. Boa complexidade, explosão rica de canela, noz moscada e gengibre. Dá muito gozo.

18 Senhora do Convento Senhora do Convento. Potência em figura de vinho, sempre muito equilibrado em todas as fases da prova. Sente-se muito o álcool, mas não lhe retira os louros.

17,5 Cockburn Quinta dos Canais. Este vinho surpreendeu, por nos últimos anos não terem vindo da casa néctares com este tipo de foco, limpeza e afinação. Nariz de fruta escura muito madura. Cor carregada, espesso, quase tinta da china. Arquitectura esplêndida. Na boca mostra chocolate preto, confirmando o frutado que se sentia no aroma. O final de prova é seco.

17,5 Fonseca Guimaraens Quinta do Panascal. Esta quinta, além de ter o enoturismo mais antigo do vinho do Porto, é uma verdadeira montra de viticultura, gerida pela mão sábia de António Magalhães e acompanhada muito de perto por David Fonseca Guimaraens. A visita recomenda-se vivamente. Tudo é agradável neste vinho e pode beber-se desde já. Muito boa amplitude de prova. Uma surpresa bem agradável.

17,5 Poças Quinta de Santa Bárbara. Um dos terroirs de eleição da Poças. O vinho está bem cheio, com notas ricas e evidentes de chocolate.

17,5 Quinta de Ventozello Quinta de Ventozello. Propriedade gigante, há poucos anos comprada por espanhóis da Galiza, está a mostrar um dos primeiros produtos da nova gestão. A enologia continua portuguesa e é com alguma surpresa que se vê este vinho a chegar tão alto, num ano que não foi o melhor. Está fresco e vegetal na boca, sendo tudo em boa potência, apesar de se encontrar ainda “mudo”.

17,5 Real Companhia Velha Quinta das Carvalhas. A quinta-emblema da RCV, juntamente com a Quinta de Cidrô. O trabalho aturado nas vinhas sente-se desde o Vintage 97, mesmo em anos que não são absolutamente favoráveis. Embora em “tom maduro”, o que não é normal nas Carvalhas, o vinho tem uma estrutura interessante. É marcado, contudo, pela frescura e comprimento no final de prova.

17,5 Vallegre Vista Alegre. Esta empresa fica perto de Chanceleiros, por cima do Pinhão e não tem nada a ver com a fábrica de porcelana do mesmo nome. Tem lutado muito pela consistência e, provavelmente, chegou a um patamar do qual deve ter a inteligência de não sair. Está aberto, prontíssimo a beber, mas não é por isso que se mostra menos complexo. É o vinho indicado para quem gosta de sabores intensos.
Martín Berasategui
"El Gran Menú de Degustación" de um dos pioneiros da nova cozinha basca

Estávamos calhados para ir há já algum tempo. Passa-se de raspão, cada vez mais depressa, por San Sebastian, a Donostia no dizer dos bascos. Martín Berasategui, hoje com um pequeno império bem montado, sobre as estacas fundas das suas raízes familiares, esteve e está sempre à espera de quem o quiser visitar. De olhos francos e atitude cândida, tem uma cozinha que prima pela inteligência e perspectiva histórica. E tem três estrelitas Michelin, o rapaz.
"Se hoje quisermos ver um robalo como os de antigamente, temos de ir ao aquário", diz ele num dos seus belos livros. A dita espécie piscícola tem trono real no seu grande menú de degustação e é exactamente por ter tido grande preponderância outrora na região que Martín o quis mostrar no seu restaurante. Isto pelo lado da abordagem histórica, apenas como exemplo. No lado intelectual, a extraordinária experiência de um mil-folhas de enguia fumada, foie gras, cebolinha e maçã verde. Impossível de prever, a degustação desta maravilha deixa memórias e desafios indeléveis.
Vamos então ao menú.
Para mais coisas sobre o menino-prodígio-que-virou-empresário, www.martinberasategui.com.

AMUSE-BOUCHE

Uma extravaganza de três pequeninas entradas, com uma mensagem clara: frutos do mar, frutos da terra e frutos da época. Começámos assim s nossa jornada difícil de esquecer.

1º Vinho - Cava Llopart Integral Brut Nature - Não tem uvas da casta Xarello, o que é, desde o início, um factor distintivo de todos os outros cavas. Vinho interessante, mas sem a secura que se desejava, para começar uma refeição em beleza como esta prometia ser.

2002 Crema de remolacha con infusión de berberechos al txakoli
Creme de beterraba com infusão de berbigão em vinho Chacolí
O vinho Chacolí aqui presente é um manifesto a favor de um néctar em tudo semelhante aos outros vinhos - de qualidade duvidosa -, mas que se bebe apenas no país basco... há muitos, muitos séculos. Textura cremosa, sabor forte da beterraba e do vinho, a deixar os berbigões mais como uma textura do que como uma iguaria completa.


2002 Croqueta cremosa de patata
Croquete cremoso de batata
Muito homogéneo, massa bem ligada e refeição espanhola que não comece com uma croqueta não é refeição. Alusão clara ao tapeo basco, que se faz abundantemente pelas ruas de San Sebastian.

2003 Sopa de Calabaza y mandarina
Sopa de abóbora e tangerina
Excelente trabalhinho de integração das duas iguarias. Por um lado, confortável no estômago, por outro suficientemente ácida para abrir o apetite.

PRATOS

2º Vinho - Guitian Godello Bierzo branco 2002 - Vinho muito interessante, boa fruta. Foi dos que andou melhor com a comida.

1995 Milhojas caramelizado de anguila ahumada, foie gras, cebolleta y manzana verde
Milfolhas caramelizado de enguia fumada, foie gras, cebolinha e maçã verde
Tem princípio, meio e fim, com todas as componentes diferentes que devem compor um prato equilibrado. O verde da maçã e as gorduras que se sentem do foie gras conduzem, com a cebolinha caramelizada, a uma experiência única. Elaboração e pontos de cozedura impecáveis.

2003 Sopa de cebolla y queso, panceta ahumada assada y cuajada de queso trufado
Sopa de cebola e queijo, panceta fumada assada e cuajada de queijo trufado
Aroma e consistência brilhantes. Servida fria, parece uma vichyssoise de alho francês, mas a cebola dá-lhe um toque mediterrânico interessante.

2003 Vieira y ostra en finas láminas con licuado gelatinizado de su coral
Vieira e ostra laminadas com água de cozer peixe gelatinizada
O fundo gelatinoso é brilhante, com sabor genuíno a mar, fazendo uma cama deliciosa para as vieiras e ostras, com toques cítricos inesquecíveis. A água utilizada para o gel é a da cozedura de cocochas (barbelas) de pescada.

3º Vinho - Belondrade y Lurtón Verdejo Rueda branco 2002 - Este vinho nunca fez ninguém saltar da cadeira, mas não vai mal na mesa, para comer com ele.

2002 Ensalada tíbia de tuétanos de verdura con marisco. Crema de lechuga de caserio y jugo yodado
Salada tépida de corações de legumes com marisco. Creme de alface com sucos iodados.
Estamos sempre no mar, agora nesta relação de muita proximidade com a horta. É isso que diferencia este prato da cozinha normanda, mas a confusão é alguma. Uma espécie de salpicão de marisco, que se traduz num festival de grande ritmo de texturas, aromas e sabores.

1999 Gelatina caliente de frutos de mar con sopa de anís y sorbete de hinojo
Gelatina quente de frutos do mar com sopa de aniz e sorvete de funcho
Absolutamente surpreendente. Há percebes, ostra, com cozeduras perfeitas e uma grande envolvência. O sorvete faz aqui as vezes do trous normand, para limpar o palato e preparar-nos para a fase seguinte do repasto.

4º Vinho - Alfons (de Luzón) Jumilla tinto 2001 - Vinho francamente interessante, foi uma belíssima descoberta. E, finalmente, um tinto!...

2003 Germinado de cebolleta dulce y anchoa, con emulsión de pimiento asado, patata y tomate
Pequeno guisado de cebolinha doce e anchovas, com emulsão de pimento vermelho assado, batata e tomate
Este prato dá um salto rápido para a gastronomia mediterrânica, exceptuando a anchova. Este prato podia ser português, é muito simpático, de repente, para os nossos sentidos.

2003 Lubina asada con caldo de acelgas, pil-pil de mostaza y ensalada de sésamo
Robalo assado com caldo de acelgas, pil-pil de mostarda e salada de sésamo
Salta imediatamente aos sentidos o bom ponto de cozedura do robalo, com uma textura crocante. O aroma colou impecavelmente ao vinho.

2003 Pichón asado con penca, queso comté, cerezas y manzanas
Pombo assado com couve portuguesa, queijo comté, cerejas e maçãs
De novo a horta, com uma carne que pontua bem, normalmente e se as coisas correrem todas bem. Foi identificado como caseiro o pombo e Martín Berasategui afirma que é assim. Há uma tradição no país basco de criação doméstica de pombos para alimentação. Tivemos aqui um festival final de texturas. Reduções brilhantes, tudo muito bem conjugado.

DOCES

5º Vinho - Telmo Rodriguez Molino Real Málaga branco - É um vinho excepcional, que Telmo Rodriguez, um dos meninos-sensação de Espanha - o mesmo que faz os vinhos Gago -, concebeu, restaurando o vino dulce de Málaga, de tradição e técnicas centenárias.

2003 Infusión de piña con helado de coco, chocolate y granizado de ron
Infusão de ananás com gelado de côco, chocolate e granizado de rum
No final de boca, é impossível separar os ingredientes e, no entanto, sentem-se todos enquanto se saboreia o prato. Estrela forte neste prato.

2003 Almendra tostada en pastel tíbio con sorbete de miel
Pastel tépido de amêndoa torrada com sorvete de mel
Muito bem, terminar com frutos secos e a acidez do mel.

2003/10/28

Os vinhos portugueses são cada vez mais iguais uns aos outros
João Paulo Martins completou 10 anos do seu guia com festa

Não vou fazer comentários ao livro do João Paulo, porque a compra é obrigatória. Nem vou falar do genial suplemento que vem com o dito, no qual JPM volta a provar todos os seus "melhores do ano". Mas não vou deixar de aqui revelar uma pequeníssima curiosidade. Ele diz "enganei-me", ou qualquer coisa semelhante, quando volta a provar alguns dos vinhos nos quais ele tinha apostado muito, em tempos idos.

Não é ironia barata, não senhor. "A ironia é a mais vil das armas", já dizia Rilke e eu aprendi na altura certa. É absolutamente notável a atitude de JPM, acerca de um produto que, como todos sabemos, está em permanente mutação. É um produto alimentar, afinal.

Espanta-me, ainda assim, que hoje JPM consiga singularizar os "melhores". Não vou a meças com a sua escolha, nem pensar, está tudo muito bem. Mas talvez o designativo entrasse melhor se fosse "os mais iguais de entre os iguais". Diferente, diferente, foi o Utopia, da Quinta dos Cozinheiros, a propriedade colada à Figueira da Foz pertença da família de José Mendonça. Para a esmagadora maioria, aliás, a festarola no Clube de Golfe da Bela Vista (Vítor Sobral) foi a ocasião primeva para provar o nec plus ultra dos néctares dos Cozinheiros.

O resto, descontados alguns ângulos e contando com as condições da prova - em pé, a comer ao mesmo tempo, etc. - pareceu-me francamente parecido. Gabo a paciência, em privado, a JPM, pelo tremendo afinco e honestidade com que se atira para a frente e escolhe, todos os anos, os vinhos do nosso contentamento.

Mas por que razão me parecem os vinhos tão "tal qual o anterior e o próximo"? Não sei, tenho algumas luzes sobre o assunto, mas penso que nunca terei a resposta.

Esta de hoje, é só mesmo para deixar cair.

Mas é verdade.

2003/10/22

João Pires, um caso muito sério
O homem do vinho do Hotel Ritz vai largado, deixem-no passar!

"Cuidado com as imitações", é a frase que falta na nova carta de vinhos do Hotel Ritz / Four Seasons, em Lisboa, a catedral da hotelaria de porta intransponível para os menos abonados. E uma experiência que hoje é fundamental, para os que, mesmo sem a bolsa a rebentar, apreciam o que é bom.

Se isto não fosse um blog, eu até me preocupava com as apresentações. Assim sendo, não. João Pires é o sommelier mais galardoado e internacional que por cá anda, mentor de muitos outros lusos, infinitamente menos afoitos do que ele, para grande mal do vinho, do seu serviço e da sua cultura. Os seus títulos são, no Four Seasons, "Head Sommelier" e "Fine Dining Manager". O seu e-mail é joao.pires@fourseasons.com, por isso, se quiserem conhecer o homem, façam favor de não deixar passar mais tempo, ponham-se no caminho dele e desafiem-no. A sério. Ele aguenta.

O "Head" no título de João Pires é particularmente justificado, ao lançar uma nova carta de vinhos como a que acaba de lançar. Se há coisa que a nova carta tem, é massa cinzenta bem aplicada. Serei talvez um pouco lerdo, mas demorou algum tempo, até que eu percebesse qual era a ideia, no alinhamento das 256 referências que se podem encontrar quando se vai ao Ritz em "Projecto Janting".

Vamos lá, então:

1. Antes de mais, a reverência feita aos enólogos, em detrimento dos produtores, que vêem o seu nome omitido da carta. Foi uma opção dura mas sentida como primordial por João Pires. O meu comentário: brilhante, na maioria das situações - é mais que justo que os artífices apareçam junto da sua obra - mas complicado, quando o produtor é o criador do néctar. Volto a insistir numa guerra antiga: há que fazer distinção entre criadores e enólogos, que isto anda demasiado confuso. Fica o desafio de colocar, sem medos, o criador de cada vinho, seja enólogo ou não.

2. A farta oferta de vinho a copo, sempre com um "truque". João Pires mostra sempre as coisas aos pares: um vinho fácil, ao pé de um mais difícil; nalguns casos, mais: um português, ao pé de um estrangeiro. Se isto não é uma saída inteligente, eu sou um apito.

3. A conjugação de vinhos com iguarias, sugerida sempre de uma forma extraordinariamente subtil. João Pires evita o que eu chamo de "efeito escadote". Não utiliza notas dominantes de um vinho, por exemplo citrinos, para aconselhar um prato cítrico. Faz a ligação pela complementaridade e, aparentemente, busca balanços equilbrados de acidez. Este ponto não é, nem podia ser, objectivo, porque a conjugação, cada um faz como quer, mas eu concordo particularmente com esta.

Os três pontos acima são, note-se, de natureza estratosférica, e não constituem matéria de crítica. Se assim fosse, todas as outras cartas de vinhos ficariam anuladas, ou reduzidas a pó.

Que eu saiba, e tanto quanto consegui apurar, é a primeira vez que um hotel faz uma chamada aos críticos para lhes mostrar a sua nova carta de vinhos. O Four Seasons fez, e fez de uma forma superlativa. O Four Seasons em Lisboa é campeão porque apoia o labor de João Pires, incluindo a sua carreira internacional, de que vamos ouvir falar ainda muito. Com esta jogada, o Four Seasons posicionou-se em definitivo na rampa de lançamento para uma viagem "para fora", que rapidamente pode criar o pleno no ambicionado guia. Pascal Meynard, Chef Executivo do Four Seasons, e Stéphane Hestin - este trabalhou com Bernard Loiseau (falecido) e Georges Blanc -, Chef do Restaurante Varanda, já puseram a mão na massa e já se sente. O Director Geral é um homem que sabe confiar quando o pessoal está à altura e isso também se sente. Está a deixar trabalhar os rapazes. Parabéns.

A terminar, devo confessar que me tomou muito tempo, até perceber por que raio os preços dos vinhos eram tão altos. Conhecendo o preço de venda à porta da adega, não se justificaria que, por exemplo, o copo de Sauvignon Blanc 2002 da Lavradores de Feitoria (Douro) custasse 6 Euros, mais caro do que a garrafa toda custa ao Four Seasons. Mas finalmente percebi! O dito copo de vinho é mais barato do que uma garrafa de água pedida ao Room Service. Estamos no Four Seasons, senhores...

2003/08/25

Vindimas com cheiro a fumo

Mesmo à boca das vindimas de 2003, vim a Mateus, cumprir uma parte das férias, que são também obrigação. Fico abismado com o envolvimento na Lavradores de Feitoria e também no levante que a vai sempre levando para melhores terrenos. O inefável Sauvignon Blanc 2002; o espesso Quinta da Costa 1999; e o brilhante Três Bagos 2001; todos são experiências a repetir mas que, decorando as concorridas mesas dos convidados de Mateus, se transformam numa festa especial. Nunca vi coisa assim e, no entanto, Mateus significa para mim sempre uma certa festa do vinho e dos seus obreiros. Foi assim que conheci a casa e, apesar de tantas outras coisas extraordinárias que me tem proporcionado, é assim que a continuo a visitar.

Este ano, os passeios à volta mostraram o que se vê em todo o lado. O país cobriu-se de carvão, agora que as chamas se desinteressaram do pratinho que lhes foi servido em bandeja de prata. É assim que vão começar as vindimas. Estamos instáveis na relação com a natureza, mas seguros de que vamos ter um ano de vinho em cheio. Oxalá! Percamo-nos, para já, para dentro de cachos cheios de coisas boas. Não há prazer que não seja egoísta e este, este ano, não o podia ser mais. Venha o vinho e o que é bom, que já chega de chorar.

Comprei em Vila Real uma tradução de "Ficções", de Jorge Luís Borges, que não conhecia. Procurei nos meus recantos favoritos aquilo que sempre me entrou mais, para confrontar. Aparece, logicamente, em "A biblioteca de Babel", qualquer coisa como "morto, não faltará quem me empurre da balaustrada". Não é pelo exercício masoquista mas, junto ao que tem acontecido, não tenho dúvidas de que caiu uma maldição em cima dos críticos de vinhos e de gastronomia. Morreu o Oliveira Figueiredo em Junho, o Hélder Pinho no princípio de Agosto, e o Matos Cristóvão há cerca de uma semana. O João Afonso queimou-se a defender a sua casa das labaredas - maldito fogo, que não larga -, com tanta coisa para escrever e quando mais precisava das suas mãos. Felizmente levou a melhor. Espero que as coisas fiquem por aqui, ou que seja eu o próximo. É insuportável assistir impotente a tanta partida e fuga.

Estamos demasiado habituados aos chavões e "o seu trabalho será sempre lembrado" está sempre no top. Não é verdade. O trabalho nefasto e ingrato da crítica morre em cada peça que se escreve. O património do crítico morre quando o crítico se vai. Há outros. Vêm outros. Vêm aqueles que os vão empurrar da balaustrada da Torre de Babel. Que razoável era afinal Borges! Não posso prometer que lembre sempre os que me antecederam, mas posso prometer que os não vou deliberadamente empurrar para fora. Por isso, vou ter uma vida mais saudável. Vou fazer dieta e andar mais contente. Espero que chegue, para pagar vidas tão caras; tanto, que acabaram antes da minha. No jantar da Levada, já não houve arroz nem batatas nem extravagâncias calóricas. Vinho, houve, nem podia ser de outra maneira. Que sirva o feito para honrar quem se foi. Até já.

No dito jantar, saiu bem o Kolheita 2001, o nec plus ultra da Kolheita de Ideias, venture de Luís Soares Duarte, Rui Moreira e Francisco Ferreira. Surpreendeu o Quinta da Estrada 2001, da Lavradores de Feitoria. Correu bem a companhia. O único que não era produtor, importador, nem enólogo era eu. Sou sempre o que menos sabe, bolas, apesar de ser sempre um dos que mais fala.

Faltam nestas alturas os vinhos do mundo. Parece-me medíocre, o exercício de comparar Douro com Douro, mais ainda a ideia de o fazer apenas para que se congratulem reciprocamente os que fazem os vinhos. Apeteceu-me imenso ter ali connosco alguns vinhos tintos espanhóis de que tanto se fala, alguns Sauvignon Blanc, para ver se o 2002 da Lavradores de Feitoria é mesmo o "meu" melhor Sauvignon Blanc, e até qualquer coisita de Itália, que me dá a impressão que nos podia ensinar muito. Lamento profundamente que os enólogos portugueses não sejam tarados pelos novos vinhos do Piemonte.

Vêm aí as vindimas e diz-se que até ao lavar dos cestos estamos nelas. Desejo a todos um bom proveito. Parece que está tudo a favor. Para mim não, mas isso interessa pouco.

2003/08/08

Vinexpo - Só para que conste
Virtudes e desatinos

Todas as vezes que os produtores, jornalistas e enófilos portugueses acorrem à Vinexpo, em Bordéus (22-26 Junho), levanta-se a questão: "será que valeu a pena?". Tirando os nossos "muito grandes", todos vão debaixo da alçada do ICEP ou do Instituto do Vinho do Porto, e todos, em conjunto, compõem o ghetto dos portugueses. Ainda sai a cerca de 10 mil euros a coisa, para os cinco dias da feira, fora os gastos - viagem, hotel, comida, etc.
Eu estive lá os dias todos mas não estive com os portugueses a tempo inteiro. Fiz enormes intervalos. As provas mais diversas, os encontros que eu tinha marcado e ainda o convívio com os jornalistas de vinho de outros países, fazem falta demais, para que em Bordéus se tente suprir uma carência que não se supre ao longo dos restantes dois anos (!) em Portugal. Fiz provas extraordinárias, com destaque para as provas dos "vinhos doces do mundo"; vinhos da Califórnia; Barolos (Itália); Bordeaux 2001 en primeurs; e Chablis. A entrevista com Robert Mondavi, o grande senhor do vinho da Califórnia, ficou-me na memória como uma das entrevistas da minha vida. O jantar com Peter Gago, enólogo-chefe da Penfolds (Austrália), mostrou como os melhores são normalmente os mais humildes e descomplicados. E os encontros com os nossos inspiradíssimos produtores do momento também não ficaram atrás.
Vi muitos portugueses a fazer negócio. Alguns deles, já estavam mesmo a vender toda a produção, para novos mercados. Conheci, a propósito, alguns distribuidores dos vinhos portugueses no estrangeiro e todos confirmaram que mais vinho tivessem mais venderiam.
Vi três vinhos portugueses a ficar no "top ten" mundial da Vinexpo - um Madeira da Barbeito, o "Poeira" (Douro) de Jorge Moreira e um outro, de que não me consigo lembrar agora - e também vi portugueses a provar vinhos do mundo, muitas vezes.
Sobre se valeu a pena, não me perguntem, tenho a certeza que sim. Os portugueses são muito teimosos e relutantes em reconhecer que lhes correm bem as coisas. Como se algum mau fado lhes estivesse reservado se mostrassem mais optimismo.
Também tenho a certeza que, tirando os produtores de rolhas de cortiça, ninguém se está a dar conta que as screwcaps e as rolhas sintéticas estão aí, Portugal vai perder um dos seus produtos de proa, sem fazer nada visível. Corre à boca cheia, entre jornalistas do métier, que a rolha de cortiça já era, salvo raríssimas excepções.
Umas coisas os portugueses lamentam, mesmo quando não têm razão. Outras coisas, os portugueses ignoram, como se não fosse nada com eles. É por isso que se ouve tanta interrogação: "será que valeu a pena?".

2003/07/26

Cipriani, no Hotel da Lapa, em Lisboa
Um paradigma e um paradoxo

Já deu para perceber que os portugueses não gostam dos seus hotéis. Não lhes servem para tomar um copo, para dar dois dedos de conversa com alguém, para passar um fim de semana, menos ainda para almoçar ou jantar. Até aos anos 70, no entanto, era aí que, muitas vezes, as famílias se reuniam para festejar um aniversário ou um momento especial. Almoçava-se e ficava-se pela tarde fora e no fim ainda se levava uns restos em Tupperware. Entretanto, havia a piscina, as mesas de jogo para cartear e uns recantos agradáveis para fumar um charutinho. Programa completo, afinal.

O que eu vejo hoje é a incredulidade. Mesmo quando comem bem, passa-lhes ao lado, porque estavam ali para resolver um problema, para confidenciar um amor ilícito, ou para fechar um negóciozinho. Não escapa a esta lógica o Hotel da Lapa, mais particularmente o Ristorante Cipriani. Estava norteado para o Nariz de Vinho Tinto, logo ali abaixo, mas tive um rebate depois de arrumar o carro cá fora e subi, em vez de descer, a Rua do Pau da Bandeira. Fiz bem, até porque há muito tempo que não dava um trambolhão tão grande. As pedras polidinhas da parte exterior do hotel deram uma enorme ajuda. Entrei, como nas outras vezes, a alta velocidade, direitinho ao restaurante, que fica logo em frente, para encontrar o sommelier Fernando Miguel, um dos poucos que está a fazer alguma coisa pela sua classe, fustigando-se na Associação de Escanções de Portugal, juntamente com outros carolas.

O jantar correu impecável, apesar de Franco Luise estar de férias. O pessoal da sala, tirando o omnisciente Maître d’Ô Chainho – cada vez mais novo -, estava um bocadinho tonto. Falaram alto uns com os outros à frente dos clientes e houve muitas falhas no serviço continuado de bebidas e pão. O barulho até deu jeito, para compensar duas mesas de casais frente a frente que não trocaram nem um olhar nem uma palavra. Era coisa de estrangeiros, mas agora também já temos. Brilhante. Mais uma mesa com árabes, italianos e um norte-americano, que combinavam e falavam alegremente sobre tecnologia, estilo compra e venda, ou import export. E outra mesa, com políticos e malta da nossa cultura. Esses, chegaram e um deles perguntou ao maître d’ô: “desculpe lá, o que é que eu comi ontem?” Lindo. Consegui mais tarde saber que garrafas das mais caras, era aos pares. Nessa noite à minha frente, foi só o Chryseia, contiveram-se, os rapazes. Têm saudades da casa de pasto, mas estão demasiado endinheirados, aí já não conseguem escoar a liquidez.

E, liquidez é o que é preciso ter para aguentar. Paguei 90 Euros e não fiz uma grande aventura, em termos dos preços. Verdade é que tive muito gozo com a qualidade do que me foi posto à frente, mas não me diverti nada. A próxima vez que eu quiser falar com o Fernando Miguel, vamos a outro sítio qualquer, senão vou associá-lo à minha ruína.

No fundo, talvez haja um fundo de razão para os portugueses terem deixado de ir aos hotéis para comer. Mesmo que a comida seja excelente, como no Cipriani, o ambiente é deplorável. Como é que melhora? Certamente não é correndo com as pessoas dali, que já são poucas. Mas é chamando a malta que não conhece mas aprecia os bons momentos. É para coisas destas que as relações públicas existem. Mais que não seja, para ensinar uma forma mais natural de atender as pessoas no restaurante.

Cá vai: Portugal precisa de uma cozinha consistente e de referência, no quadro da gastronomia mediterrânica. Sítios como este são excelentes palcos para, entre outros, empurrar os bons vinhos portugueses para a ribalta. O Cipriani, tal como está, faz lembrar as embaixadas antigas dos países da cortina de ferro. Mesmo quando a intenção era boa, não parecia nada.
Aos mestres e artistas construtores de vinhos
Uma nota breve sobre enologia e criação

È difícil entender a diferença entre fazer um vinho e criar um vinho. Para muitos, de resto, é mais importante a componente do fazer do que a do criar. Criar um vinho? Que vem a ser isso? O caso salta-me tanto mais à cabeça quanto mais hoje tantos enólogos reclamam para si o epíteto de criador de vinhos. Até porque, na maioria dos casos, isso não é verdade.
Desgraçados estaríamos se não houvesse bons enólogos e há-os. Não são muitos, mas são suficientes para passar os vícios da qualidade e das coisas boas aos seus homólogos menos inspirados. Mas o vinho tem mais. Tem Arquitectura. Tem Design. Tem Conteúdo.
Na Arquitectura, há sempre um “programa”, fixado normalmente entre o arquitecto e o cliente, a cumprir, seja para uma casa de campo, um prédio, um palácio ou uma cidade inteira. Quem traduz esse programa para um espaço real, palpável e habitável, com a sua própria assinatura, é o arquitecto. Quem o construiu merece também a admiração de todos, até do próprio arquitecto.
No Design a coisa não é diferente, especialmente se estivermos a falar de objectos consensuais e de uso comum, por exemplo uma chávena de café. O balanço forma/função, a fantasia do próprio objecto, estão na mente do designer quando imagina e cria as “versões de autor”. O que as pessoas vão sentir já não é isso mas é parecido, porque há-de ter havido entretanto uma indústria que se encarregou de multiplicar as chávenas nuns bons milhares de exemplares. Se for boa, passará a estar na lista de preferências. Se, por outro lado, estiver mal construída, as pessoas vão pô-la de lado.
O Conteúdo é talvez o aspecto mais gritante – é preciso não esquecer que estou a fazer um paralelo com a criação de vinhos – do aspecto criativo. Duas revistas podem ter a mesma capa, o mesmo aspecto e até, por absurdo, os mesmos textos, e passar mensagens completamente diferentes. A sequência das matérias, a sua organização e até o aspecto gráfico, influenciam o produto final, a ponto de mesmo em análise aprofundada, levar todos a pensar que nem sequer os textos são iguais. Nenhuns louros se tiram aos gráficos, fotógrafos e ilustradores que contribuiram para que a mensagem passasse.

Em qualquer dos três pontos, o vinho permite a mesma abordagem. Vejam a seguinte arquitectura de vinho: “quero um vinho super-tânico, com uma acidez elevada e e álcool que consiga aguentar tudo isso, mas quero que o produto final seja de uma grande harmonia e beleza”. Há-de ser preciso desmontar isto para a enologia e qualque enólogo que consiga atingir os objectivos do “programa”, digo-lhes já, é um grande enólogo. Mas não foi o criador do vinho.
A forma de o produzir, burilar as suas arestas, desde as vinhas até às barricas, pode bem ser entendido como o design do vinho. É o que vai fazer tornar o vinho numa delícia partilhável, produzida em boas quantidades – que bom que era… - e com qualidade consistente. Aqui, criador e enólogo têm de estar em grande sintonia. Até surge a figura do adegueiro, erradamente considerada tantas vezes como subalterna do enólogo. Não é!
Finalmente, o conteúdo. As emoções que o vinho desperta. Tenho-me batido, de mim para mim, com alguma dureza, sobre o vazio que paira nas notas de prova que se publicam actualmente, além do péssimo português. Note-se que me incluo no grupo que censuro. Em vez de se comunicar impressões e de fazer a verdadeira crítica – veja-se a arquitectura e o design, de novo, e como se pode falar deles – da intenção dos criadores, quase se rouba a obra ao autor, pondo-lhe uma nota em cima e um texto ilegível! Só um grande criador de vinhos se preocupa com este aspecto, “emotivo”, da sua obra. É minha convicção que está tudo por fazer, salvo algumas excepções que, obviamente, não vou referir.

Concluindo. Não gosto da crise criativa por que os vinhos portugueses estão a passar. Estão, no geral, pouco inspirados. A enologia, essa está cada vez melhor, apesar de uma prova com enólogos mais parecer um campeonato do que uma prova. Também não gosto da soberba de muitos enólogos, que até fazem os vinhos excepcionalmente bem, mas que se julgam melhores do que as pessoas para quem trabalham. Como se a ideia não fosse conviver!

O ideal até seria os criadores de vinho serem enólogos e os enólogos serem criadores de vinho. Mas, numa equipa, uns têm de ser os criadores, outros têm de ser os enólogos.

2003/07/25

Andei algum tempo a ver como havia de despejar o que, quanto a mim, ia acontecendo com os vinhos, a mesa e as coisas boas que me vão acontecendo, dentro e fora de Portugal. Espero estar à altura deste novo projecto.

Vale a pena, a propósito, registar, como nota inaugural, o Dia do Vinho, na Madeira, no passado dia 19 de Julho, em pleno Funchal e ao ar livre. Moderado pela Teresa Myson, houve um debate que, ao contrário do que eu podia alguma vez ter imaginado, prendeu a atenção de centenas de pessoas. É comovente o empenhamento da gente do vinho naquela ilha, em fazer as coisas melhor. É espantosa a evolução do mercado dos VQPRD Madeirense, desde 1999, altura em que eu comecei a acompanhar de perto o que aí se passava em termos de vinho de mesa. Enganem-se os que achavam que a casta Tinta Negra Mole não teria nunca potencial para bom vinho de mesa. A mão paciente de Carlota Ferreira, nas vinhas e nas microvinificações, a tenacidade e capacidade de trabalho de Conceição Fernandes - ambas estão agora com Paulo Rodrigues na direcção do Instituto do Vinho da Madeira -, mostraram exactamente o contrário. Francisco Albuquerque, enólogo da Madeira Wine Company, acaba de fazer um VQPRD tinto 100% Tinta Negra Mole que merece, até pela coragem, os 16,5+ que lhe dou, ficando agora com a responsabilidade de continuar a repetir a proeza. Os vinhos de João Mendes estão bem consolidados, com o Quinta do Moledo a marcar pontos.

Está de parabéns também o Vinho da Madeira, especialmente na interessante categoria que se tornou o "5 Anos". Saiu vencedor do Concurso que houve no Dia do Vinho o "Alvada", da Madeira Wine Company, da autoria de Francisco Albuquerque. No "10 Anos", foi o "D'Oliveiras" Meio Seco o vencedor, da omnipresente Pereira d'Oliveira. Dois merecidos primeiros prémios.

O IVM, com a presidência de Paulo Rodrigues, pode bem estar a marcar novos ritmo e rumo no país. Uma mudança a acompanhar de perto, para ver como pode evoluir o "nosso" Instituto da Vinha e do Vinho (IVV). E o que vai acontecer, afinal, às Comissões Vitivinícolas Regionais.