2003/07/26

Cipriani, no Hotel da Lapa, em Lisboa
Um paradigma e um paradoxo

Já deu para perceber que os portugueses não gostam dos seus hotéis. Não lhes servem para tomar um copo, para dar dois dedos de conversa com alguém, para passar um fim de semana, menos ainda para almoçar ou jantar. Até aos anos 70, no entanto, era aí que, muitas vezes, as famílias se reuniam para festejar um aniversário ou um momento especial. Almoçava-se e ficava-se pela tarde fora e no fim ainda se levava uns restos em Tupperware. Entretanto, havia a piscina, as mesas de jogo para cartear e uns recantos agradáveis para fumar um charutinho. Programa completo, afinal.

O que eu vejo hoje é a incredulidade. Mesmo quando comem bem, passa-lhes ao lado, porque estavam ali para resolver um problema, para confidenciar um amor ilícito, ou para fechar um negóciozinho. Não escapa a esta lógica o Hotel da Lapa, mais particularmente o Ristorante Cipriani. Estava norteado para o Nariz de Vinho Tinto, logo ali abaixo, mas tive um rebate depois de arrumar o carro cá fora e subi, em vez de descer, a Rua do Pau da Bandeira. Fiz bem, até porque há muito tempo que não dava um trambolhão tão grande. As pedras polidinhas da parte exterior do hotel deram uma enorme ajuda. Entrei, como nas outras vezes, a alta velocidade, direitinho ao restaurante, que fica logo em frente, para encontrar o sommelier Fernando Miguel, um dos poucos que está a fazer alguma coisa pela sua classe, fustigando-se na Associação de Escanções de Portugal, juntamente com outros carolas.

O jantar correu impecável, apesar de Franco Luise estar de férias. O pessoal da sala, tirando o omnisciente Maître d’Ô Chainho – cada vez mais novo -, estava um bocadinho tonto. Falaram alto uns com os outros à frente dos clientes e houve muitas falhas no serviço continuado de bebidas e pão. O barulho até deu jeito, para compensar duas mesas de casais frente a frente que não trocaram nem um olhar nem uma palavra. Era coisa de estrangeiros, mas agora também já temos. Brilhante. Mais uma mesa com árabes, italianos e um norte-americano, que combinavam e falavam alegremente sobre tecnologia, estilo compra e venda, ou import export. E outra mesa, com políticos e malta da nossa cultura. Esses, chegaram e um deles perguntou ao maître d’ô: “desculpe lá, o que é que eu comi ontem?” Lindo. Consegui mais tarde saber que garrafas das mais caras, era aos pares. Nessa noite à minha frente, foi só o Chryseia, contiveram-se, os rapazes. Têm saudades da casa de pasto, mas estão demasiado endinheirados, aí já não conseguem escoar a liquidez.

E, liquidez é o que é preciso ter para aguentar. Paguei 90 Euros e não fiz uma grande aventura, em termos dos preços. Verdade é que tive muito gozo com a qualidade do que me foi posto à frente, mas não me diverti nada. A próxima vez que eu quiser falar com o Fernando Miguel, vamos a outro sítio qualquer, senão vou associá-lo à minha ruína.

No fundo, talvez haja um fundo de razão para os portugueses terem deixado de ir aos hotéis para comer. Mesmo que a comida seja excelente, como no Cipriani, o ambiente é deplorável. Como é que melhora? Certamente não é correndo com as pessoas dali, que já são poucas. Mas é chamando a malta que não conhece mas aprecia os bons momentos. É para coisas destas que as relações públicas existem. Mais que não seja, para ensinar uma forma mais natural de atender as pessoas no restaurante.

Cá vai: Portugal precisa de uma cozinha consistente e de referência, no quadro da gastronomia mediterrânica. Sítios como este são excelentes palcos para, entre outros, empurrar os bons vinhos portugueses para a ribalta. O Cipriani, tal como está, faz lembrar as embaixadas antigas dos países da cortina de ferro. Mesmo quando a intenção era boa, não parecia nada.
Aos mestres e artistas construtores de vinhos
Uma nota breve sobre enologia e criação

È difícil entender a diferença entre fazer um vinho e criar um vinho. Para muitos, de resto, é mais importante a componente do fazer do que a do criar. Criar um vinho? Que vem a ser isso? O caso salta-me tanto mais à cabeça quanto mais hoje tantos enólogos reclamam para si o epíteto de criador de vinhos. Até porque, na maioria dos casos, isso não é verdade.
Desgraçados estaríamos se não houvesse bons enólogos e há-os. Não são muitos, mas são suficientes para passar os vícios da qualidade e das coisas boas aos seus homólogos menos inspirados. Mas o vinho tem mais. Tem Arquitectura. Tem Design. Tem Conteúdo.
Na Arquitectura, há sempre um “programa”, fixado normalmente entre o arquitecto e o cliente, a cumprir, seja para uma casa de campo, um prédio, um palácio ou uma cidade inteira. Quem traduz esse programa para um espaço real, palpável e habitável, com a sua própria assinatura, é o arquitecto. Quem o construiu merece também a admiração de todos, até do próprio arquitecto.
No Design a coisa não é diferente, especialmente se estivermos a falar de objectos consensuais e de uso comum, por exemplo uma chávena de café. O balanço forma/função, a fantasia do próprio objecto, estão na mente do designer quando imagina e cria as “versões de autor”. O que as pessoas vão sentir já não é isso mas é parecido, porque há-de ter havido entretanto uma indústria que se encarregou de multiplicar as chávenas nuns bons milhares de exemplares. Se for boa, passará a estar na lista de preferências. Se, por outro lado, estiver mal construída, as pessoas vão pô-la de lado.
O Conteúdo é talvez o aspecto mais gritante – é preciso não esquecer que estou a fazer um paralelo com a criação de vinhos – do aspecto criativo. Duas revistas podem ter a mesma capa, o mesmo aspecto e até, por absurdo, os mesmos textos, e passar mensagens completamente diferentes. A sequência das matérias, a sua organização e até o aspecto gráfico, influenciam o produto final, a ponto de mesmo em análise aprofundada, levar todos a pensar que nem sequer os textos são iguais. Nenhuns louros se tiram aos gráficos, fotógrafos e ilustradores que contribuiram para que a mensagem passasse.

Em qualquer dos três pontos, o vinho permite a mesma abordagem. Vejam a seguinte arquitectura de vinho: “quero um vinho super-tânico, com uma acidez elevada e e álcool que consiga aguentar tudo isso, mas quero que o produto final seja de uma grande harmonia e beleza”. Há-de ser preciso desmontar isto para a enologia e qualque enólogo que consiga atingir os objectivos do “programa”, digo-lhes já, é um grande enólogo. Mas não foi o criador do vinho.
A forma de o produzir, burilar as suas arestas, desde as vinhas até às barricas, pode bem ser entendido como o design do vinho. É o que vai fazer tornar o vinho numa delícia partilhável, produzida em boas quantidades – que bom que era… - e com qualidade consistente. Aqui, criador e enólogo têm de estar em grande sintonia. Até surge a figura do adegueiro, erradamente considerada tantas vezes como subalterna do enólogo. Não é!
Finalmente, o conteúdo. As emoções que o vinho desperta. Tenho-me batido, de mim para mim, com alguma dureza, sobre o vazio que paira nas notas de prova que se publicam actualmente, além do péssimo português. Note-se que me incluo no grupo que censuro. Em vez de se comunicar impressões e de fazer a verdadeira crítica – veja-se a arquitectura e o design, de novo, e como se pode falar deles – da intenção dos criadores, quase se rouba a obra ao autor, pondo-lhe uma nota em cima e um texto ilegível! Só um grande criador de vinhos se preocupa com este aspecto, “emotivo”, da sua obra. É minha convicção que está tudo por fazer, salvo algumas excepções que, obviamente, não vou referir.

Concluindo. Não gosto da crise criativa por que os vinhos portugueses estão a passar. Estão, no geral, pouco inspirados. A enologia, essa está cada vez melhor, apesar de uma prova com enólogos mais parecer um campeonato do que uma prova. Também não gosto da soberba de muitos enólogos, que até fazem os vinhos excepcionalmente bem, mas que se julgam melhores do que as pessoas para quem trabalham. Como se a ideia não fosse conviver!

O ideal até seria os criadores de vinho serem enólogos e os enólogos serem criadores de vinho. Mas, numa equipa, uns têm de ser os criadores, outros têm de ser os enólogos.

2003/07/25

Andei algum tempo a ver como havia de despejar o que, quanto a mim, ia acontecendo com os vinhos, a mesa e as coisas boas que me vão acontecendo, dentro e fora de Portugal. Espero estar à altura deste novo projecto.

Vale a pena, a propósito, registar, como nota inaugural, o Dia do Vinho, na Madeira, no passado dia 19 de Julho, em pleno Funchal e ao ar livre. Moderado pela Teresa Myson, houve um debate que, ao contrário do que eu podia alguma vez ter imaginado, prendeu a atenção de centenas de pessoas. É comovente o empenhamento da gente do vinho naquela ilha, em fazer as coisas melhor. É espantosa a evolução do mercado dos VQPRD Madeirense, desde 1999, altura em que eu comecei a acompanhar de perto o que aí se passava em termos de vinho de mesa. Enganem-se os que achavam que a casta Tinta Negra Mole não teria nunca potencial para bom vinho de mesa. A mão paciente de Carlota Ferreira, nas vinhas e nas microvinificações, a tenacidade e capacidade de trabalho de Conceição Fernandes - ambas estão agora com Paulo Rodrigues na direcção do Instituto do Vinho da Madeira -, mostraram exactamente o contrário. Francisco Albuquerque, enólogo da Madeira Wine Company, acaba de fazer um VQPRD tinto 100% Tinta Negra Mole que merece, até pela coragem, os 16,5+ que lhe dou, ficando agora com a responsabilidade de continuar a repetir a proeza. Os vinhos de João Mendes estão bem consolidados, com o Quinta do Moledo a marcar pontos.

Está de parabéns também o Vinho da Madeira, especialmente na interessante categoria que se tornou o "5 Anos". Saiu vencedor do Concurso que houve no Dia do Vinho o "Alvada", da Madeira Wine Company, da autoria de Francisco Albuquerque. No "10 Anos", foi o "D'Oliveiras" Meio Seco o vencedor, da omnipresente Pereira d'Oliveira. Dois merecidos primeiros prémios.

O IVM, com a presidência de Paulo Rodrigues, pode bem estar a marcar novos ritmo e rumo no país. Uma mudança a acompanhar de perto, para ver como pode evoluir o "nosso" Instituto da Vinha e do Vinho (IVV). E o que vai acontecer, afinal, às Comissões Vitivinícolas Regionais.