2004/07/03

Junho de 2004 - Restaurantes e Vinhos
Surpresas boas e dois ou três desapontamentos

Restaurantes

As coisas boas:

** Ritz Four Seasons - A propósito do novo livro de João Paulo Martins, dedicado aos vinhos generosos portugueses. Não me canso de recomendar a quem passe por Lisboa - ou more em Lisboa - para não deixar de fazer a experiência.
** A Galeria Gemelli - Para desabafar no ombro de um bom amigo, quando há tanta gente que não sabe o que faz. Genial: carpaccio de atum, numa qualidade de matéria prima inacreditável.
5 do 10 - Porto de abrigo para o quotidiano, quando pesa sempre tanto. Regresso de João Garcias à calha, com a casa regularmente inundada de pessoas interessantes e interessadas.
100 Maneiras
- Foi aqui que para mim Portugal bateu a Inglaterra. Qualidade, qualidade e qualidade. Espero que José Avillez aguente o ritmo; a casa bem precisa de mais clientes.

As menos boas:

* Fortaleza do Guincho - Afastou-se de mim e mantém insistentemente uma carta que está cheia de coisas que já conhecemos. Ou Marc Le Ouedec está desmotivado - impossível - ou a casa está a sentar-se prematuramente em cima dos louros. Não há nada que não se consiga estragar. Cuidado!
Monte Mar - Pela primeira vez em tantos anos de fidelidade, vieram oferecer-me um peixe deplorável. "Coma este robalinho, está muito fresquinho". Por que não o comem vocês, já que a conta somos sempre nós que a pagamos?

Vinhos

As coisas boas:

Zambujeiro tinto 2001 - Alentejo - Bem conseguido, consensual mas mesmo assim diferente. É disto que o Alentejo precisa.
Monte da Ravasqueira tinto 2003 - Alentejo - A venture de José Manuel de Mello, secundado por Filipe, seu filho e Manuel Amaral Cabral, seu genro, brilha pela correcção do foco que tem em relação ao produto. "Fazer o melhor vinho alentejano a 6 Euros". Outra coisa de que o Alentejo precisa. Parabéns ao grande financeiro e a Rui Reguinga, o enólogo.
Ferreirinha "Quinta da Leda" tinto 1999 - Douro - Nunca me soube tão bem e quero acreditar que não foi por o ter provado ao almoço com Lígia Marques, RP da Sogrape, e Manuel Guedes, um dos homens da terceira geração da casa. O vinho amaciou e está prontinho a beber agora. Quem ainda tiver, confira.

As menos boas:

Aveleda "Grinalda" 2003 - Vinho Verde - Assim não vamos a lado nenhum. Vinho curtíssimo na boca, desagradável, acídulo.


O que Paulo Cruz não faz, ninguém faz
Quatro Séculos de Vinho do Porto no Ritz

Foi mais um acontecimento daqueles por que vale a pena sacrificar uma noite de sábado. A coisa agradou-me duplamente: em primeiro lugar, estaria em prova um vinho do séc. XVIII - do Porto, ou melhor, do Douro Superior -; em segundo lugar, por se cumprir um costume completamente perdido, de rumar para os bons hotéis da capital ao fim de semana. O elemento masculino foi dominante, o que é ainda de lamentar, mas sempre serão de saudar as senhoras que marcaram presença. O Hotel Ritz Four Seasons merece a visita, com as estrelas fortes no Maitre Sommelier João Pires e no Chef Stéphan Hestin. Para quem se interessa pelo assunto gastronomia-vinho, não são precisas quaisquer outras referências. Para quem navega mais ao largo, temos ali um homem do vinho de andança internacional, com trabalho confirmado na rede dos grandes sommeliers do mundo. Temos, também, o jovem francês que trabalhou lado a lado com o famoso Bernard Loiseau nalguns dos mais estrelados restaurantes da Europa.
E temos também Paulo Cruz, como sempre no seu estilo de apaixonado e que não deixa sequer respirar quem se atreva a dizer que não gosta ou não conhece bem o vinho do Porto. Consta que não há quem não se "converta", pela sua mão experiente. É o dono do Bar do Binho, em Sintra e há já muito tempo - cerca de dois anos - que não puxava dos galões. Mais que não fosse, para que todos percebêssemos que o que Paulo Cruz, negociante de Porto, não faz, ninguém faz. Vamos então ao Ritz.

Uma promessa cumprida

Com o título "Quatro séculos de vinho do Porto", o encontro teve convocatória distribuída à tertúlia normalmente animada por Paulo Cruz, estendida a todos os interessados, iniciados ou não nas coisas do Porto. Neste caso específico, convinha que existisse já alguma iniciação, para que não se perdesse pitada das relíquias prometidas.
Foi com gozo grande que revi caras que não via há cerca de dois anos, os leais e sérios orbitantes dos grandes vinhos doces. Outra demonstração do "fenómeno Paulo". Estava tudo sentado à mesa, com cerca de 40 militantes prontos para o desafio. Telemóveis desligados, problemas adiados para depois, responsabilidades em banho-maria, tudo a postos. E um aroma do outro mundo, com todos os vinhos servidos, alinhados em flights pela organização da prova.
O primeiro flight foi logo de arromba, dividindo de imediato as opiniões. Estavam ali um Niepoort Colheita 1908 (engarrafado em 1972), um Borges "Soalheira Vineyard" Vintage 1917 e um Niepoort Garrafeira 1931 (engarrafado em 1938, decantado em 1979). Tirando o vinho do meio, já um pouco chato no palato, a sala rachou ao meio, metade para o Colheita, outra metade para o Garrafeira. Com o passar dos minutos e a opinião, percebi que me tornei uma raridade, porque pendi para este último. De qualquer forma o choque estava dado.
De flight em flight, já na estratosfera, seguimos pelo espaço-tempo fora, desbravando as coisas novas - e velhas - que nos esperavam nos copos. O Dow's Vintage 45, elegante; o Graham's Vintage 55, belíssimo, não fora tão doce...; o Taylor's Vintage 63, com um final longo, numa obra prima de integração e evolução; e o Fonseca Guimaraens Vintage 67, bem menos fogoso; foram vinhos que ritmaram bem a prova, elevando o nível para os patamares Paulo Cruz do costume, mas únicos. De repente o Fonseca Vintage 70, uma das vedetas da prova. Ainda fechado, cor rubi limpa, mereceu o acolhimento favorável de muitos. Logo a seguir, dois vinhos que não estavam no seu melhor - Gould Campbell Vintage 77 e Cockburn's Vintage 83 - seguidos de duas boas compensações: Graham's Vintage 85 (garrafa magnum), que consegue o milagre de fugir à lógica decepcionante de quase todos os vintages de 85; e o Quinta do Noval Nacional Vintage 94, este a não colher muitos adeptos, quanto a mim pela tendência "doce" da prova até aí.
Entrou depois o que foi para mim o campeão: o Taylor's Quinta de Vargellas "Vinhas Velhas" Vintage 95. Além da pujança do fruto, ainda presente, marcou-me a profundidade e a frescura deste néctar, muito mineral. Depois, o inevitável Graham's Vintage 2000, em diversas provas anteriores a sair como o melhor 2000; mas não em todas...

De repente, o século XVIII...

Tinha sido anunciado e aí estava ele. Um vinho do Douro Superior, da casa de Délio Mesquita, a que se convencionou chamar Reserva 1796 (engarrafado em Setembro de 2003). Castanho impenetrável, para mim passava bem em prova cega como Madeira Verdelho. Estava quase essência, apesar de uma acidez pronunciada. Não deixa de ser admirável como ainda se podem encontrar vinhos destes pelo Douro fora. E de onde este veio, havia mais: um esplêndido Reserva 1896 (engarrafado em 2002). Na cor parecia caramelo, mas na boca deixava impressões de café e pimenta, marcando pelo exotismo.
A terminar, dois lotes que podem vir a ser o próximo Vintage Niepoort 2003, criações do genial e generoso Dirk Niepoort. Um deles, super-tânico, o outro com perfil mais alcoólico, fez adivinhar que o Vintage 2003 da Niepoort vai ser a mistura dos dois. Eu experimentei juntá-los na mesma proporção e, mais uma vez, estraguei a produção à casa Niepoort. Quem bom é saber que eles não se enganam!
Não adianta entrar em comparações, entre coisas que não são comparáveis. Campeonatos destes são sempre ganhos por todos, facto aceite sem apupo. O que vale a pena é estar lá. Continua e continuará a ser inesquecível uma viagem destas.

... e um jantar à altura

Mas havia mais, com a sumptuosa mesa posta para o jantar, que havia de marcar fundo. Até porque soube resistir à tentação do vinho do Porto... Com a "cocotte de lavagante com alcachofras, cogumelos pleurotte, chanterelle, trufas e piquillo" já servida, foi vertido o inefável champanhe Ruinart Rosé bruto. Destaque para a textura da cocotte e para a pureza dos ingredientes, à vista e "picáveis" um a um. João Pires anda numa de brancos austríacos e anda bem, porque o Schloss Gobelsburg Grüner Veltliner 2002 apresenta grande versatilidade. Talvez com uma ponta de acidez a mais, para o "filete de robalo marinado com citronelle, raviolo de alho francês com manteiga de amêndoa, crocante de basílico e bivalves", o prato da noite. Impossível de conjugar na perfeição com vinho, como está a acontecer hoje na alta cozinha, em que a amplitude de sabores e aromas é muito grande.
Seguiu-se o Niepoort Charme 2002, mais um coelho tirado da cartola pela dupla Pires/Cruz, fruto da boa cumplicidade que ambos detêm com aquela casa. Aterrou em cima de um avantajado "canon de borrego com pimenta d'Espalette, pequenos legumes de Verão, molho navarin e croustillant de pão com chutney de tomate e balsâmico". Meteu-me medo o chutney com o vinho quando olhei para o menu no princípio do jantar, mas estava bem macio, com acidez controlada. O vinho - o único português do jantar - mereceu comentários favoráveis por parte de toda a gente, mas não houve o entusiasmo merecido. Afinal, foi um ano terrível, em termos de vindima para o Douro, mas Dirk Niepoort não deixou de prouzir o seu topo de gama.
A refeição foi coroada com um vinho que nunca teremos por cá. Trata-se do espantoso e delicioso Inniskilin Cabernet Franc Icewine 2001. Prensado com as uvas colhidas tardiamente e com o frio gélido do Canadá, deu um néctar que pôs todos KO. A pomada veio para acompanhar a "tarte folhada de frutos vermelhos e sorbet de toranja". Para mim, esta última iguaria estaria bem só por si. Se há coisa boa na conjugação de comida com o vinho, é a complementaridade e aí o jogo estava interessante.

Epílogo

No final, os discursos e os considerandos, na sua maioria pedindo a Paulo Cruz que não desaparecesse e que continuasse sempre, dentro da sua generosidade, a partilhar connosco os bons vinhos da sua colecção. Ouviu-se uma proposta tímida de alguém, sugerindo que na próxima vez cada um trouxesse um vinho do Porto da sua eleição, para partilhar. Paulo Cruz não diz que não. Vamos é ver se acontece.
É que - repito - o que Paulo Cruz não faz, ninguém faz. E o vinho do Porto bem merece.