2006/03/08

Abençoadas bolhinhas
O Champagne Deutz aposta forte em Portugal

Miguel Grijó e Pedro Leitão, da Vinidecanter, já tinham avisado que estavam a "trabalhar" com a Deutz (lê-se Datze, com o A mudo), mas eu estava longe de imaginar que o trabalho cavaria tão fundo no mercado nacional, com honras de jantar na Galeria Gemelli, em Lisboa, com o representante da família que até há bem pouco - antes da compra pela Louis Roederer - da casa Deutz, perto de Epernay, para explicar tudo aos menos letrados em bolhinhas na forma de cordão, como é o meu caso. A lição valeu a pena, na que foi uma organização conjunta Loja Corpo e Alma / Vinidecanter.

A Deutz foi fundada em 1838 por dois franceses com nomes pouco óbvios em França, não estivéramos na região de Champagne, onde os sangues tendem a fundir-se mesmo a baixas temperaturas: William Deutz e Pierre-Hubert Geldermann, ambos fugidos da Prússia de Napoleão, mas conhecedores do seu métier. Geldermann era vendedor de champanhes e Deutz era homem de negócios. A amizade entre os dois sócios era tal que os seus filhos Alfred Geldermann e Marie Deutz - adivinhe quem era filho de quem - casaram. A coisa fica séria e a Deutz acaba por fazer parte do núcleo exlusivo de fundadores do Syndicat des Grandes Marques, em 1882. Foi então que passou a fazer parte da classe das grandes marcas de Champagne, uma designação que, se for tudo sempre bem feito, não se perde mais. Estava-se, portanto no "segundo império" napoleónico, trinta anos antes dos gigantescos problemas que quase destruiriam toda a Champagne, ou toda a França.

A célebre revolução dos lavradores da primeira década do séc. XX resultou em saques e apropriações ilegais de enorme gravidade, mal do qual de resto França só se veria livre 50 anos mais tarde, passadas as guerras mundiais e a fome, que dizimaram as populações rurais. No que toca à Deutz, apesar de sempre se ter conseguido manter acima da linha de água, a obsessão pela produção e respeito pelos antepassados - o carisma dos fundadores ainda hoje se sente, apesar de estar nas mãos da Roederer - quase roçou a loucura, com a família totalmente endividade e tecnicamente falida e ainda assim sendo sempre a fazer o esforço para continuar. Há qualquer coisa nas bolhinhas que mais parece magia do que vinho.

Hoje a empresa está bem e recomenda-se. Vinhedos próprios que satisfazem cerca de 40% das carências vitícolas da casa, vindo as restantes uvas de lavradores com quem a Deutz mantém relações estáveis há várias gerações, sem nunca as haver interrompido, apesar das guerras e revoluções. A produção actual situa-se em 1,4 milhões de garrafas. Dessas, provámos algumas na Galeria Gemelli, num jantar que mostra bem os pergaminhos do Chef Augusto Gemelli quanto a capacidade de conjugação vinhos/iguarias.

O jantar

Pecados de queijo Scamorza fumado e alcachofras, gelatina de pêssego e alecrim.
85 Deutz Brut Classic N/V (30 Euros)
Conjugação: 50%. Tipo tabuleiro de xadrez, à maneira de contraste, talvez duros demais. Tenho um preconceito severo em relação à amizade entre alcachofras e vinhos... Em relação ao champagne, tendo em quanto que se trata de um vinho entrada de gama, já estamos muito bem.

Ostras ao vapor com couve lombarda crocante e emulsão de trufa branca.
92 Deutz Millésimé 1999 (30 Euros)
Conjugação: 90%. Seria impossível imaginar o resultado sem o provar, porque a elaboração estava brilhante. Até a trufa branca casou bem com o néctar. Ostras com couve? Há que provar! Conselho: não tente fazer em casa.

Gnochetti de camarão sobre caril de fruta branca, presunto estaladiço.
95 Deutz Blanc de Blancs 1998 (55 Euros)
Conjugação: 80%. O caril parece saltar do prato, quando se leva o vinho à boca. Há um efeito potenciador de parte a parte que torna tudo muito feliz. O vinho é, como o nome diz, feito a partir apenas de castas brancas e apresentou uma frescura e comprimento na boca invulgares na sua tipologia.

Suprema de pintada cozinhada a baixa temperatura, redução agridoce de citrinos e pudim de risotto de shiitake.
92 Deutz Cuvée William Deutz 1996 (100 Euros)
Conjugação: 75%. Algo confuso no palato, este caso foi paradigmático para mim, talvez pelas notas oxidativas do champagne. Gostava imenso de acompanhar o entusiasmo dos promotores em relação aos produtos topo de gama, como é este champagne de homenagem a um dos fundadores, mas infelizmente muitas vezes acontece o contrário. Talvez ele tivesse brilhado mais se o prato fosse menos eclético.

Sopa morna de chocolate branco com especiarias, frutos silvestres e perfume de laranja.
89 Deutz Cuvée Rosé 2000 (50 Euros)
Conjugação: 50%. As notas deste rosé inspiram mais frutos secos e hortelã do que os frutos silvestres e, por isso mesmo, a sensação foi mais a de ter duas coisas separadas, vinho e iguaria, do que os dois num só.

As inefáveis conjugações musicais de Tiago Sallas, da Corpo e Alma, sairam quase imperceptíveis, por duas razões, que são as de sempre: 1) Música excessivamente baixa; 2) Ruído excessivamente alto. Mas a sua insistência há-de dar um dia um tratado de triangulações vinho-música-iguaria.