2003/08/25

Vindimas com cheiro a fumo

Mesmo à boca das vindimas de 2003, vim a Mateus, cumprir uma parte das férias, que são também obrigação. Fico abismado com o envolvimento na Lavradores de Feitoria e também no levante que a vai sempre levando para melhores terrenos. O inefável Sauvignon Blanc 2002; o espesso Quinta da Costa 1999; e o brilhante Três Bagos 2001; todos são experiências a repetir mas que, decorando as concorridas mesas dos convidados de Mateus, se transformam numa festa especial. Nunca vi coisa assim e, no entanto, Mateus significa para mim sempre uma certa festa do vinho e dos seus obreiros. Foi assim que conheci a casa e, apesar de tantas outras coisas extraordinárias que me tem proporcionado, é assim que a continuo a visitar.

Este ano, os passeios à volta mostraram o que se vê em todo o lado. O país cobriu-se de carvão, agora que as chamas se desinteressaram do pratinho que lhes foi servido em bandeja de prata. É assim que vão começar as vindimas. Estamos instáveis na relação com a natureza, mas seguros de que vamos ter um ano de vinho em cheio. Oxalá! Percamo-nos, para já, para dentro de cachos cheios de coisas boas. Não há prazer que não seja egoísta e este, este ano, não o podia ser mais. Venha o vinho e o que é bom, que já chega de chorar.

Comprei em Vila Real uma tradução de "Ficções", de Jorge Luís Borges, que não conhecia. Procurei nos meus recantos favoritos aquilo que sempre me entrou mais, para confrontar. Aparece, logicamente, em "A biblioteca de Babel", qualquer coisa como "morto, não faltará quem me empurre da balaustrada". Não é pelo exercício masoquista mas, junto ao que tem acontecido, não tenho dúvidas de que caiu uma maldição em cima dos críticos de vinhos e de gastronomia. Morreu o Oliveira Figueiredo em Junho, o Hélder Pinho no princípio de Agosto, e o Matos Cristóvão há cerca de uma semana. O João Afonso queimou-se a defender a sua casa das labaredas - maldito fogo, que não larga -, com tanta coisa para escrever e quando mais precisava das suas mãos. Felizmente levou a melhor. Espero que as coisas fiquem por aqui, ou que seja eu o próximo. É insuportável assistir impotente a tanta partida e fuga.

Estamos demasiado habituados aos chavões e "o seu trabalho será sempre lembrado" está sempre no top. Não é verdade. O trabalho nefasto e ingrato da crítica morre em cada peça que se escreve. O património do crítico morre quando o crítico se vai. Há outros. Vêm outros. Vêm aqueles que os vão empurrar da balaustrada da Torre de Babel. Que razoável era afinal Borges! Não posso prometer que lembre sempre os que me antecederam, mas posso prometer que os não vou deliberadamente empurrar para fora. Por isso, vou ter uma vida mais saudável. Vou fazer dieta e andar mais contente. Espero que chegue, para pagar vidas tão caras; tanto, que acabaram antes da minha. No jantar da Levada, já não houve arroz nem batatas nem extravagâncias calóricas. Vinho, houve, nem podia ser de outra maneira. Que sirva o feito para honrar quem se foi. Até já.

No dito jantar, saiu bem o Kolheita 2001, o nec plus ultra da Kolheita de Ideias, venture de Luís Soares Duarte, Rui Moreira e Francisco Ferreira. Surpreendeu o Quinta da Estrada 2001, da Lavradores de Feitoria. Correu bem a companhia. O único que não era produtor, importador, nem enólogo era eu. Sou sempre o que menos sabe, bolas, apesar de ser sempre um dos que mais fala.

Faltam nestas alturas os vinhos do mundo. Parece-me medíocre, o exercício de comparar Douro com Douro, mais ainda a ideia de o fazer apenas para que se congratulem reciprocamente os que fazem os vinhos. Apeteceu-me imenso ter ali connosco alguns vinhos tintos espanhóis de que tanto se fala, alguns Sauvignon Blanc, para ver se o 2002 da Lavradores de Feitoria é mesmo o "meu" melhor Sauvignon Blanc, e até qualquer coisita de Itália, que me dá a impressão que nos podia ensinar muito. Lamento profundamente que os enólogos portugueses não sejam tarados pelos novos vinhos do Piemonte.

Vêm aí as vindimas e diz-se que até ao lavar dos cestos estamos nelas. Desejo a todos um bom proveito. Parece que está tudo a favor. Para mim não, mas isso interessa pouco.

2003/08/08

Vinexpo - Só para que conste
Virtudes e desatinos

Todas as vezes que os produtores, jornalistas e enófilos portugueses acorrem à Vinexpo, em Bordéus (22-26 Junho), levanta-se a questão: "será que valeu a pena?". Tirando os nossos "muito grandes", todos vão debaixo da alçada do ICEP ou do Instituto do Vinho do Porto, e todos, em conjunto, compõem o ghetto dos portugueses. Ainda sai a cerca de 10 mil euros a coisa, para os cinco dias da feira, fora os gastos - viagem, hotel, comida, etc.
Eu estive lá os dias todos mas não estive com os portugueses a tempo inteiro. Fiz enormes intervalos. As provas mais diversas, os encontros que eu tinha marcado e ainda o convívio com os jornalistas de vinho de outros países, fazem falta demais, para que em Bordéus se tente suprir uma carência que não se supre ao longo dos restantes dois anos (!) em Portugal. Fiz provas extraordinárias, com destaque para as provas dos "vinhos doces do mundo"; vinhos da Califórnia; Barolos (Itália); Bordeaux 2001 en primeurs; e Chablis. A entrevista com Robert Mondavi, o grande senhor do vinho da Califórnia, ficou-me na memória como uma das entrevistas da minha vida. O jantar com Peter Gago, enólogo-chefe da Penfolds (Austrália), mostrou como os melhores são normalmente os mais humildes e descomplicados. E os encontros com os nossos inspiradíssimos produtores do momento também não ficaram atrás.
Vi muitos portugueses a fazer negócio. Alguns deles, já estavam mesmo a vender toda a produção, para novos mercados. Conheci, a propósito, alguns distribuidores dos vinhos portugueses no estrangeiro e todos confirmaram que mais vinho tivessem mais venderiam.
Vi três vinhos portugueses a ficar no "top ten" mundial da Vinexpo - um Madeira da Barbeito, o "Poeira" (Douro) de Jorge Moreira e um outro, de que não me consigo lembrar agora - e também vi portugueses a provar vinhos do mundo, muitas vezes.
Sobre se valeu a pena, não me perguntem, tenho a certeza que sim. Os portugueses são muito teimosos e relutantes em reconhecer que lhes correm bem as coisas. Como se algum mau fado lhes estivesse reservado se mostrassem mais optimismo.
Também tenho a certeza que, tirando os produtores de rolhas de cortiça, ninguém se está a dar conta que as screwcaps e as rolhas sintéticas estão aí, Portugal vai perder um dos seus produtos de proa, sem fazer nada visível. Corre à boca cheia, entre jornalistas do métier, que a rolha de cortiça já era, salvo raríssimas excepções.
Umas coisas os portugueses lamentam, mesmo quando não têm razão. Outras coisas, os portugueses ignoram, como se não fosse nada com eles. É por isso que se ouve tanta interrogação: "será que valeu a pena?".