2003/10/28

Os vinhos portugueses são cada vez mais iguais uns aos outros
João Paulo Martins completou 10 anos do seu guia com festa

Não vou fazer comentários ao livro do João Paulo, porque a compra é obrigatória. Nem vou falar do genial suplemento que vem com o dito, no qual JPM volta a provar todos os seus "melhores do ano". Mas não vou deixar de aqui revelar uma pequeníssima curiosidade. Ele diz "enganei-me", ou qualquer coisa semelhante, quando volta a provar alguns dos vinhos nos quais ele tinha apostado muito, em tempos idos.

Não é ironia barata, não senhor. "A ironia é a mais vil das armas", já dizia Rilke e eu aprendi na altura certa. É absolutamente notável a atitude de JPM, acerca de um produto que, como todos sabemos, está em permanente mutação. É um produto alimentar, afinal.

Espanta-me, ainda assim, que hoje JPM consiga singularizar os "melhores". Não vou a meças com a sua escolha, nem pensar, está tudo muito bem. Mas talvez o designativo entrasse melhor se fosse "os mais iguais de entre os iguais". Diferente, diferente, foi o Utopia, da Quinta dos Cozinheiros, a propriedade colada à Figueira da Foz pertença da família de José Mendonça. Para a esmagadora maioria, aliás, a festarola no Clube de Golfe da Bela Vista (Vítor Sobral) foi a ocasião primeva para provar o nec plus ultra dos néctares dos Cozinheiros.

O resto, descontados alguns ângulos e contando com as condições da prova - em pé, a comer ao mesmo tempo, etc. - pareceu-me francamente parecido. Gabo a paciência, em privado, a JPM, pelo tremendo afinco e honestidade com que se atira para a frente e escolhe, todos os anos, os vinhos do nosso contentamento.

Mas por que razão me parecem os vinhos tão "tal qual o anterior e o próximo"? Não sei, tenho algumas luzes sobre o assunto, mas penso que nunca terei a resposta.

Esta de hoje, é só mesmo para deixar cair.

Mas é verdade.

2003/10/22

João Pires, um caso muito sério
O homem do vinho do Hotel Ritz vai largado, deixem-no passar!

"Cuidado com as imitações", é a frase que falta na nova carta de vinhos do Hotel Ritz / Four Seasons, em Lisboa, a catedral da hotelaria de porta intransponível para os menos abonados. E uma experiência que hoje é fundamental, para os que, mesmo sem a bolsa a rebentar, apreciam o que é bom.

Se isto não fosse um blog, eu até me preocupava com as apresentações. Assim sendo, não. João Pires é o sommelier mais galardoado e internacional que por cá anda, mentor de muitos outros lusos, infinitamente menos afoitos do que ele, para grande mal do vinho, do seu serviço e da sua cultura. Os seus títulos são, no Four Seasons, "Head Sommelier" e "Fine Dining Manager". O seu e-mail é joao.pires@fourseasons.com, por isso, se quiserem conhecer o homem, façam favor de não deixar passar mais tempo, ponham-se no caminho dele e desafiem-no. A sério. Ele aguenta.

O "Head" no título de João Pires é particularmente justificado, ao lançar uma nova carta de vinhos como a que acaba de lançar. Se há coisa que a nova carta tem, é massa cinzenta bem aplicada. Serei talvez um pouco lerdo, mas demorou algum tempo, até que eu percebesse qual era a ideia, no alinhamento das 256 referências que se podem encontrar quando se vai ao Ritz em "Projecto Janting".

Vamos lá, então:

1. Antes de mais, a reverência feita aos enólogos, em detrimento dos produtores, que vêem o seu nome omitido da carta. Foi uma opção dura mas sentida como primordial por João Pires. O meu comentário: brilhante, na maioria das situações - é mais que justo que os artífices apareçam junto da sua obra - mas complicado, quando o produtor é o criador do néctar. Volto a insistir numa guerra antiga: há que fazer distinção entre criadores e enólogos, que isto anda demasiado confuso. Fica o desafio de colocar, sem medos, o criador de cada vinho, seja enólogo ou não.

2. A farta oferta de vinho a copo, sempre com um "truque". João Pires mostra sempre as coisas aos pares: um vinho fácil, ao pé de um mais difícil; nalguns casos, mais: um português, ao pé de um estrangeiro. Se isto não é uma saída inteligente, eu sou um apito.

3. A conjugação de vinhos com iguarias, sugerida sempre de uma forma extraordinariamente subtil. João Pires evita o que eu chamo de "efeito escadote". Não utiliza notas dominantes de um vinho, por exemplo citrinos, para aconselhar um prato cítrico. Faz a ligação pela complementaridade e, aparentemente, busca balanços equilbrados de acidez. Este ponto não é, nem podia ser, objectivo, porque a conjugação, cada um faz como quer, mas eu concordo particularmente com esta.

Os três pontos acima são, note-se, de natureza estratosférica, e não constituem matéria de crítica. Se assim fosse, todas as outras cartas de vinhos ficariam anuladas, ou reduzidas a pó.

Que eu saiba, e tanto quanto consegui apurar, é a primeira vez que um hotel faz uma chamada aos críticos para lhes mostrar a sua nova carta de vinhos. O Four Seasons fez, e fez de uma forma superlativa. O Four Seasons em Lisboa é campeão porque apoia o labor de João Pires, incluindo a sua carreira internacional, de que vamos ouvir falar ainda muito. Com esta jogada, o Four Seasons posicionou-se em definitivo na rampa de lançamento para uma viagem "para fora", que rapidamente pode criar o pleno no ambicionado guia. Pascal Meynard, Chef Executivo do Four Seasons, e Stéphane Hestin - este trabalhou com Bernard Loiseau (falecido) e Georges Blanc -, Chef do Restaurante Varanda, já puseram a mão na massa e já se sente. O Director Geral é um homem que sabe confiar quando o pessoal está à altura e isso também se sente. Está a deixar trabalhar os rapazes. Parabéns.

A terminar, devo confessar que me tomou muito tempo, até perceber por que raio os preços dos vinhos eram tão altos. Conhecendo o preço de venda à porta da adega, não se justificaria que, por exemplo, o copo de Sauvignon Blanc 2002 da Lavradores de Feitoria (Douro) custasse 6 Euros, mais caro do que a garrafa toda custa ao Four Seasons. Mas finalmente percebi! O dito copo de vinho é mais barato do que uma garrafa de água pedida ao Room Service. Estamos no Four Seasons, senhores...